Da adversidade seguimos vivendo. Em 1967, Hélio Oiticica escreveu um texto determinante para se pensar a arte e o Brasil. Intitulado “Esquema Geral da Nova Objetividade”, há nele um desenho panorâmico da cena artística àquela altura e dos desafios a serem enfrentados. Escrito em um momento politicamente tenso, com desalentadoras perspectivas de futuro, para dizer o mínimo, ele destaca seis características da arte brasileira: vontade construtiva; tendência para o objeto; participação do espectador (corporal, tátil, semântica); abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; tendência para proposições coletivas; ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte.
Uma pergunta, ainda atual, perpassava a escrita do Esquema Geral: como apostar em uma relação nova entre singularidade local e inserção global. No caso da cultura brasileira – e isso foi colocado de modo muito original pela geração tropicalista sob a influência da Antropofagia – nossa singularidade foi sendo construída pela mistura de diferentes matrizes culturais. Ou seja, não temos uma essência própria, uma marca de origem a ser depurada de qualquer contaminação indesejada, vivemos da apropriação constante do outro, somos uma colagem de influências que não para de se transformar. Como escreveu Oiticica, estamos sempre “à procura de uma caracterização cultural, no que nos diferenciamos do europeu com seu peso cultural milenar e do americano do norte com suas solicitações superprodutivas”.
As seis características apontadas acima seguem valendo – não obstante as diferenças de contexto – para se pensar a arte produzida hoje. Buscamos evidenciar isso neste Panorama. Sem qualquer tematização daquelas tendências, elas perpassam indiretamente os trabalhos aqui apresentados. A despeito da falência da ideia de progresso e de uma avassaladora crise urbana e ambiental, ainda resiste uma vontade construtiva entre nós. Uma construção que se sabe frágil, mas crucial para enfrentar os riscos de uma informalidade desagregadora. Nota-se também uma crescente abertura do fazer artístico para problemas sociais, éticos e políticos, ou seja, para um engajamento, nada simplificador, que acredita nas brechas em que a arte quer se infiltrar para tentar mudar as coisas – sabendo-se que querer mudar não basta e que sua impotência pode ter desdobramentos imprevistos.
Reunir em uma exposição, que se pretende um Panorama da Arte Brasileira, desde a concretude da intervenção arquitetônica até a fluidez da dança, passando pelo audiovisual, pela escultura, pela fotografia e pela palavra, mais que explicitar a diversidade da cena contemporânea, em que a divisão de meios expressivos e de disciplinas parece obsoleta, busca ressaltar a multiplicidade de tempos que compõem nosso momento histórico. O tempo do corpo que dança, da palavra escrita e da imagem projetada respondem a formas de percepção e de experiência plurais. Simultaneamente, é parte de nosso desafio articular os diferentes imaginários que se contaminam e se multiplicam no Brasil entre a cidade e a floresta, as comunidades periféricas e os centros cosmopolitas, entre o caos, a indeterminação e o mito.
Misturar poéticas conflitantes, trazer outras vozes e gestos para dentro das instituições que constroem as narrativas hegemônicas, revelar antagonismos e diferenças, tudo isso é parte de uma ideia de Panorama e de uma discussão sobre o Brasil. Isso, no exato momento em que o Brasil vive uma de suas piores crises de identidade, quando a promessa de futuro virou uma terrível distopia que constrange as possibilidades do presente, parece propício colocar, mais uma vez, a pergunta sobre o Brasil. O Problema-Brasil é um desafio e uma miragem: aparece como promessa de alegria, mas escapa quando vamos em sua direção. E, a cada passo, parece que vai para mais longe. Entretanto, não dá para virar as costas; há que se encarar a miragem, ao mesmo tempo ilusória e real, fazendo deste enfrentamento o caminho para nos tornarmos menos assombrados com nossa assustadora incompetência coletiva. A arte é o espaço disponível para ampliarmos o campo do possível.