Hércules Barsotti é um artista que, desde os primórdios de sua produção, pesquisa as diferentes configurações do espaço, utilizando com rigor as possibilidades da cor e da forma, o que deriva em perspectivas inovadoras da própria pintura como poética.
Apresentava-se como pintor e projetista gráfico. Em sua formação como pintor, teve a orientação do artista de origem italiana e professor do Liceu de Artes e Ofícios Enrico Vio durante o período de 1932 a 1934. Barsotti buscou, naquelas aulas, aprender técnicas de pintura e desenho, mas sua pesquisa se diferenciou profundamente daquela de seu professor, já que Vio não se alinhava nem se deixou influenciar pelas tendências modernistas bastante debatidas em nosso meio cultural e artístico, sobretudo na cidade de São Paulo.
Outras formas de aprendizagem e convivência artística com seus pares também ampliaram seu repertório no âmbito da visualidade. Em uma entrevista cedida à revista do MAM-SP em 1999, o próprio Barsotti se expressou a esse respeito quando afirmou que começou como todo mundo. Interessou-se por pintura e foi fazê-la e estudá-la. Diz o artista que “tinha um amigo que era pintor, Dario Mecatti, muito hábil, com uma grande técnica, só que não tinha muita criação, (...): pintava muito da natureza, figuras, coisas assim. Um dia ele me convidou para pintar alguma coisa também. Jogou um monte de uvas em cima de uma mesa. Mas não era criação, era uma reprodução da natureza” (Barsotti, 1998).
As pesquisas plásticas de Barsotti o levaram a experimentar algumas tendências que estavam sendo discutidas e utilizadas pelos artistas de São Paulo. Uma delas foi o surrealismo, cujos princípios foram alvo de atenção sobretudo de alguns artistas vinculados ao movimento modernista e das gerações seguintes, como Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Cícero Dias e Maria Martins, entre outros. Na entrevista citada, Barsotti confirma que passou “da pintura natural para um surrealismo”. Mas, em seguida, afirma que “não era bem o que [ele] queria” (Barsotti, 1998).
Ao olhar tais pinturas e desenhos (como os desenhos Sem título, nanquim sobre papel, 1952 e Composição, óleo sobre tela, 1953), notaremos, desde então, que a questão da estrutura e do espaço já estava presente na forma como os elementos visuais eram arranjados sobre o plano pictórico. Sua opção por uma versão do surrealismo vinculada à tendência metafísica pode ser interpretada como indicador de uma propensão para a organização espacial por meio da ordem aplicada na composição, a qual, de certa forma, insinua uma preocupação com a racionalidade e a geometrização. Em tais obras, os vazios, o uso de cores – poucas e sutis – e a proporção estão ordenados com uma atenção manifesta relativa ao equilíbrio das formas e sua conformação e relação com o espaço. Nesse aspecto, cabe ainda analisar que, na obra Composição, de 1953, o elemento humano, embora colocado em primeiro plano, não sugere nenhuma exploração conceitual de caráter humanista, mas, ao contrário, parece acentuar e organizar a distribuição dos elementos da composição.
Embora suas primeiras pinturas datem dos anos 1940, foi ao longo da década de 1950 que Barsotti executou seus primeiros desenhos abstrato-geométricos. Em tais desenhos, de uma fase inicial de seu vínculo com a abstração, vemos claramente a preocupação com as intercorrências entre formas e espaço nas quais ele explora algumas possibilidades da geometria, mas ainda sem o rigor que suas obras do período posterior, de vertente neoconcreta, apresentam.
Em desenhos como Sem título, nanquim sobre papel, 1956 e Figura Geométrica Branca e Preta, nanquim sobre papel, 1956, vemos o artista explorando conexões da forma e do movimento no plano. No entanto, em alguns, ainda nos deparamos com uma sugestão de figuras e mesmo paisagens que se sobressaem do plano. Além disso, não há, em tais desenhos, o rigor construtivo que explorou em suas obras pouco tempo depois. As linhas, de dimensões variadas, acentuam o movimento ao mesmo tempo em que circunscrevem os espaços. Dessa produção, na qual o movimento é dado pelas curvas e variações da linha, para aquela mais geometrizada, há pouca distância temporal. Barsotti rapidamente passou a utilizar formas geométricas em arranjos por meio dos quais construiu, reconstruiu e desconstruiu o espaço, criando um jogo entre as formas contentoras e as contidas.
Mais uma vez, damos voz ao artista que indica os caminhos que percorreu até encontrar sua afinidade definitiva junto aos movimentos de tendência concreta e neoconcreta. Diz ele que “houve a I Bienal de São Paulo, em 1951, lá no prédio do Trianon, e veio um grupo de artistas suíços que tinha uma obra muito construída, muito geometrizada, que me atraiu e me influenciou muito. Até hoje continuo nessa linha” (Barsotti, 1998). De fato, com a reflexão feita por ele em uma distância de tempo razoável entre sua produção dos anos 1950, seu depoimento e a produção posterior até o fim de sua vida, pode-se dizer que Barsotti se manteve fiel aos princípios da construção.
Um personagem obrigatoriamente a ser lembrado na trajetória de Hércules Barsotti rumo à produção de uma obra com base na estrutura e na geometria é Willys de Castro. Ambos frequentavam o Museu de Arte Moderna de São Paulo quando ainda era sediado à Rua Sete de Abril. A amizade dos artistas derivou na criação, em 1954, do Estúdio de Projetos Gráficos, no qual trabalharam ao longo de dez anos em uma grande quantidade de projetos que os aproximou, cada vez mais, do rigor geométrico, sem, contudo, tornar seu trabalho excessivamente calculado.
Essa busca da precisão no trabalho de ambos os artistas era tão coerente que se tornou argumento de um ensaio de Pietro Maria Bardi que comenta não sobre a obra ou os projetos gráficos, mas sobre os desenhos produzidos por ambos para a indústria têxtil. Para acentuar a preocupação com uma produção tão exata e assertiva, Bardi fala sobre o ateliê onde os artistas trabalhavam. Em uma nota publicada no Diário de São Paulo em julho de 1967, Bardi compara a dupla Willys e Barsotti a lorde Brummel, dândi londrino considerado árbitro da moda de seu tempo. Diz ele que, assim como para Brummel, um terno e acessórios eram concebidos como uma obra de arte e o vesti-lo, um ato religioso – para a dupla W&B a feitura de um objeto também era um ato religioso. Bardi afirma que via neles “a mesma crença numa atitude, num estilo, a coragem em defendê-lo, a fidelidade à precisão milimétrica chegando, até o pernóstico de um total de consideração de cada sutileza. O ateliê dos mesmos é organizado com uma ordem logaritmicada. A primeira vez que o adentramos, olhamos para o chão para ver se não deveríamos calçar chinelos para não perturbar o encerado. (...) Willys e Barsotti não deixam notar nada de estranho no ateliê: a colocação, o espaço, as coisas, formas, cores, tudo é em obediência a um estilo de artistas-artistas” (Bardi, 1967). Tais observações foram feitas em função do contato de Bardi com os desenhos realizados pela dupla para a Rhodia.
O fim dos anos 1940 e o início dos 1950 foram bastante fecundos para a arte, pois foi o momento em que se criaram os museus de arte e de arte moderna, em especial o MAM-SP, com sua Bienal Internacional de Arte. Nesse ambiente de acirrados debates e de construção de um sistema mais sólido de arte no país, os artistas eram colocados no epicentro das polêmicas sobre a arte. Algumas disputas entre figurativos e abstratos, abstratos informais e formalistas e também entre concretos e neoconcretos se tornaram históricas. Havia, desde o “Manifesto Neoconcreto”, publicado em 1959, uma discussão acirrada entre os artistas sobre seu entendimento do que deveria ser a arte e suas formas de expressão em um mundo que se transforma rapidamente e que sugere novas sensibilidades. Tais debates foram pontuados por dois importantes protagonistas: Ferreira Gullar, em nome dos neoconcretos, e Waldemar Cordeiro, pelos concretos. As opções estéticas e filosóficas de Barsotti e de Willys de Castro os deixaram próximos, sobretudo, do grupo dos neoconcretos.
Assim como Hércules Barsotti e Willys de Castro, Theon Spanudis – um dos signatários do “Manifesto Neoconcreto” – tinha em comum com eles o fato de não se alinharem com os pressupostos do concretismo preconizado, em São Paulo, a partir da iniciativa do Grupo Ruptura, do qual fizeram parte, em sua fundação, além de Cordeiro, os artistas Lothar Charoux, Luiz Sacilotto, Geraldo de Barros, Kazmer Féjer, Anatol Wladyslaw e Leopoldo Haar.
Portanto, não é estranho entender por que Barsotti e Willys de Castro foram convidados por Ferreira Gullar para expor junto aos artistas neoconcretos do Rio de Janeiro nas antológicas 2ª e 3ª Mostra de Arte Neoconcreta, sediadas no Ministério da Educação (1960) e no Museu de Arte Moderna (1961), respectivamente. Esse alinhamento junto aos pressupostos do neoconcretismo deu a Barsotti uma grande liberdade de experimentação. O período que cobre toda a década de 1950 foi bastante fecundo para o artista, pois foi quando ele definiu seus objetos de interesse no âmbito da visualidade e desenvolveu uma gramática própria que ampliou e fortaleceu, como linguagem, ao longo das décadas seguintes, principalmente durante os anos 1960 e 1970, quando expôs com mais constância e teve a oportunidade de mostrar seu trabalho no Brasil e no exterior.
As obras produzidas ao longo da década de 1950 e início da de 1960 eram feitas apenas em preto e branco. Sua aproximação com a cor ocorreu em 1963. Disse Barsotti: “Quando eu pintava a forma, não me interessava o colorido. Pintava só em branco e preto com umas tintas que ressecavam rápido. Isso foi no fim de 1950, por aí. Em 1963, vi numa revista americana que tinham descoberto uma tinta, a acrílica-vinílica. (...) Quando comecei em branco e preto, fazia formas muito simples. Depois, com a cor, a forma foi se enriquecendo. Com o tempo, voltei à simplicidade” (Barsotti, 1998).
A introdução da cor foi fundamental em sua obra. Além disso, a geometria, aplicada nas formas inscritas em desenhos e pinturas, ampliou-se para o próprio formato do suporte com o uso de telas losangulares, redondas, triangulares, hexagonais, pentagonais e quadradas, acentuando as questões plásticas sugeridas pelo artista. Sua pesquisa seguiu aprofundando-se, criando uma obra bastante consistente e coerente.
A questão da forma e, em especial, da forma geométrica é fundamental na obra de Barsotti. Tanto sua configuração quanto o tamanho das figuras geométricas que se revelam engendram uma associação com seu posicionamento no espaço pictórico. Tal procedimento traz à consciência, por meio de ângulos e inclinações, movimentos que sugerem uma espacialidade arquitetônica.
As figuras planas formam parte de um recurso muito utilizado pelo artista para a definição de seu espaço pictórico. Embora a questão da delimitação dos espaços seja uma constante, Barsotti diluía a linha com o recurso da cor ou do contraste do preto e branco. Ele construía figuras geométricas que, por meio da modulação de ângulos e no enquadramento dado pelos limites da tela, em vez de se apresentarem como planas, engendram a percepção visual de figuras geométricas projetadas no espaço. Esse resultado visual ocorre por um confronto potente das figuras sem utilizar qualquer recurso de ilusão cognitiva. As figuras geométricas circunscrevem as áreas e, ao mesmo tempo, as estruturam.
Algumas qualidades aparentes das formas, ou o que se pode chamar de uma configuração de forças visuais que ocorrem na relação entre as linhas e os volumes e sua organização estrutural, permitem que sua distribuição no plano bidimensional nos atinja direta e profundamente.
Barsotti é um artista fortemente consciente de que, na relação com o espaço, a fisionomia de uma forma visual, seja nos seus desenhos, seja em suas pinturas, não é sempre a mesma. A operação por meio da qual o artista inclina as formas – quadrados, triângulos, semicírculos, entre outras – e as dispõe sobre o plano pictórico é extremamente calculada tanto na sua relação com a moldura quanto naquela mais ampla, que considera o campo do espaço ao redor da obra e de sua relação com o mundo externo, ou seja, sua relação e o confronto com outras obras, com o espaço de exibição e com seu posicionamento contextual. O resultado desse procedimento demanda a busca de constantes novas condições para a assimilação de suas qualidades perceptivas, que, ao se conectar com o mundo externo, reforça a presença da obra circunscrita em sua individualidade.
O artista explora com inteligência o princípio por meio do qual as inclinações dos elementos da composição não interferem na estrutura da forma em si, mas alteram imensamente nossa percepção. Disso resulta que nossa observação seja constantemente requerida em função das surpreendentes novas relações possíveis ao olhar e a nossas distintas formas de assimilação da obra, exigindo, naturalmente, um posicionamento reflexivo diante da mesma.
Outra estratégia fundamental na operação plástica de Barsotti está no uso de telas cujos formatos não se limitam ao do “quadro” tradicional. No âmbito do desenho e da pintura tradicionais, o conceito de quadro remete a uma seção que prescreve um plano vertical de projeção de uma imagem. A questão da perspectiva, questionada e muitas vezes combatida pelas artes moderna e contemporânea, tornou o plano pictórico em espaço de experimentos. Quando opta por telas em formatos não usuais, porém mantendo formas geométricas definidas, como círculos, triângulos, pentágonos, hexágonos, losangos, entre outros, Barsotti intensifica seu procedimento no qual a relação dos planos e sua vinculação com o espaço pictórico projetam espaços organizados por elementos que permitem a relação das partes com possíveis arquiteturas. Se, por um lado, o artista atua no âmbito da pintura e explora todas as suas possibilidades, por outro, revela com intensidade que sua forma, distinta do quadro tradicional retangular ou quadrado, resulta em uma mudança necessária na correlação que estabelece como espaço delimitador das figuras pintadas na superfície da tela. Contudo, a relação da pintura como projeção no espaço é determinada por tais limites. A tela, como um contorno maior, em sua relação com as formas geométricas, modula o espaço ao redor. O aspecto não usual de suas telas atua como projeção e opera com as relações perceptivas de maneira a questionar as características bidimensionais da tela. Suas formas são potentes a ponto de nos lançar na questão de sua presença como objeto e, portanto, como uma presença tridimensional. Além disso, tais formatos acentuam a relação das partes com o todo. Passamos, então, a considerações que incluem relações de medidas e amplitude dos ângulos e criação de áreas delimitadas por superfícies e, portanto, entramos na questão dos volumes e do espaço.
Uma de suas constantes no processo de intervenção na lógica do quadro está na inversão da tela quadrada e sua “transformação” em um losango. Nesse processo, aparece outra simetria com tal intensidade que uma dinâmica muito acentuada surge como resultado de uma menor estabilidade do olhar. Os ângulos atuam como forma de acentuar as extremidades da tela e, na relação com as figuras que ocupam o plano pictórico, a movimentação preconiza variados espaços modulares. A obra Multileituras Opcionais, de 1974, é um excelente exemplo dessa estratégia de Barsotti. Nesse trabalho, os distintos ângulos das formas triangulares sugerem sobreposições, camadas e volumes que se projetam no espaço. Por outro lado, a obra Concentrações Interligadas I, também de 1974, que acentua a operação com o losango por meio da inversão das figuras geométricas internas, também quadrados e triângulos invertidos, traz, em sua relação com a cor, um “quase equilíbrio” que é posto em xeque a cada nova mirada. É uma obra com presença física intensa cuja proposta, nos parece, é designar as propriedades relacionadas com a posição e a forma de objetos no espaço e, simultaneamente, colocá-las em risco a partir das operações derivadas da percepção visual das mesmas. Para isso, as formas simples sobre o plano, aliadas a seu maior recurso – a cor –, atuam em conjunção.
Poderíamos considerar o período dos anos 1940 como um momento no qual Barsotti se dedicou a compreender a pintura. Sua produção dessa época não tem muita conexão com o que veio a partir do momento em que optou por trabalhar a partir dos pressupostos construtivos. Na fase seguinte, em que iniciou com as obras produzidas em meados dos anos 1950, o artista trabalhou suas pinturas e seus desenhos usando apenas o preto e o branco. Em tais pinturas, nas quais utilizou a técnica do óleo sobre tela, a preponderância da forma é acentuada pelos contrastes entre os elementos colocados sobre o plano. Apesar de Barsotti realçar que, em tais obras, seu interesse estava voltado para a questão da forma, um aspecto prático também o levou a optar pelo preto e branco. Disse o artista que “a tinta a óleo leva três ou quatro dias para secar, mas o preto e o branco secavam mais rápido” (Barsotti, 2002).
A questão da preferência pelo preto e branco, que Ana Maria de Moraes Belluzzo chama de não cor, pode estar associada, segundo a autora, a uma “vontade de qualificar a visualidade” que Barsotti buscou na prática como artista gráfico. Para Belluzzo, “é provável que a poética de Barsotti tenha surgido à margem da pintura, fortemente marcada pelas artes gráficas” (Belluzzo, 2004).
Os resultados plásticos advindos da série em branco e preto o levaram a ampliar seu leque de experimentos, acrescentando o uso de areia sobre a pintura para trabalhar a questão da luz por meio dos brilhos e reflexos que gerava. O próprio Barsotti explicou seu processo: “No começo, eu trabalhava com areia, esmalte e óleo. Por exemplo, em uma tela completamente negra, na parte lisa eu usava tinta a óleo. Onde eu colocava areia, pintava com esmalte e depois jogava a areia para grudar. Para colorir, passava aguarrás, que dissolvia o esmalte. Essa dissolução tingia a areia, mas os grãos de quartzo não absorviam a cor” (Barsotti, 2002). A paleta restrita ao branco e preto e o uso da areia sofreram uma profunda alteração quando Barsotti começou a usar a cor em função de uma questão prática: o desenvolvimento e a comercialização da tinta acrílica-vinílica, que ele veio a conhecer em 1963. A partir disso, o artista produziu algumas das obras que se tornaram uma grande referência em seu trabalho.
Em tais obras, o espaço e a cor se configuram como intensos meios perceptivos. As cores que utilizava iam além dos contrastes entre quentes e frias, primárias, secundárias e complementares. Como sabemos, a questão da luminosidade afeta tanto a percepção da própria cor quanto aquela do espaço. Barsotti acentuou esse procedimento usando contrastes que indicam a relatividade e a imprecisão das cores. Seu processo não é resultado dos métodos utilizados para alcançar efeitos ópticos, mesmo que fundamentado nas qualidades da cor como fenômeno físico. Trata-se de pensar a cor – ou o espectro visível –, a cor transmitida – luz – e a cor refletida. Barsotti trabalhava contrastes, porém bastante inusitados em função de diferentes intensidades ou graus de pureza das cores em confronto. Além disso, ele utilizava os contrastes de distância, relacionada com a força da cor em questão e, em alguns casos, o contraste simultâneo no qual a junção de várias cores criava relações e tensões. Sua operação mais constante, no entanto, ocorria pela criação de áreas definidas no plano que se intensificavam com o uso da cor, reiterando seu interesse inicial em relação à forma.
O uso da tinta acrílica pelo artista também não era aleatório. A superfície pintada tornava-se bastante condensada e não criava fissuras. Em função dessa homogeneidade e dessa regularidade, Barsotti alcançou realizar em seu trabalho com a cor toda a potencialidade de uma pintura, ao mesmo tempo rigorosa e sensível. Como a secagem era rápida, era possível ao artista aplicar várias camadas de cor até chegar à intensidade e à textura de cor pretendida, acentuando os limites das formas e, por consequência, os efeitos visuais desejados. O uso da areia foi retomado pelo artista nos anos 2000, mas, então, trabalhando-o associado à cor para um efeito radicalmente diferente. Nas telas dessa fase, ele colava a areia no suporte e, em seguida, aplicava a tinta acrílica. A tonalidade da areia alterava a cor sobre a areia, criando matizes diferentes das mesmas cores e efeitos visuais distintos.
Como o próprio artista acentuou, o uso da cor o levou a enriquecer a forma. De fato, o movimento ocorreu pela interação das cores que entraram em relação e sugeriam uma intensa movimentação que apresentava uma grande gama de possibilidades sensíveis.
A cor na obra de Barsotti tem uma presença tão marcante que se pode dizer que foi um grande colorista. Mas não se trata apenas de colorir, e sim de usar a cor no âmbito de uma gramática construtiva própria.
A produção das vanguardas históricas europeias inaugurou um pensamento em arte que partiu da ruptura com a arte tradicional. Tinha como proposta uma grande tarefa: a de transformação da própria arte visando a um diálogo com o mundo circundante – que mudava rapidamente –, colocando-a como propulsora e intermediária de uma nova ordem que, esperava-se, fosse mais justa.
Em algumas de suas vertentes, a arte tornava-se cada vez mais conceitual e autorreflexiva, à medida que a ideia de experimentação ganhava força e se baseava em questões de método e suas formas de aplicação na produção de objetos artísticos. Nesse sentido, a concepção de uma obra de arte com base em um projeto parecia perfeitamente factível.
Os estudos de Barsotti podem ser vistos como um sistema de raciocínio sobre sua forma de expressão eleita e que resume e materializa o impulso criativo do artista, bem como sua inserção no espaço e sua forma de elaboração. Neles constam etapas de conceituação nas quais representações gráficas e excertos identificam estágios de desenvolvimento, produção e execução de uma proposta que se estrutura e, portanto, se materializa.
A opção pelos estudos como forma de desenvolvimento de um projeto criativo é reveladora do modo de abordagem de seus objetos de interesse – o espaço, a forma e a cor –, cujos resultados plásticos são evidentes. Nos estudos de Barsotti são vistos – parcialmente – conceitos expressos como um vetor que canaliza o gesto criativo e o compreende como mediador necessário entre a ideia e sua materialização, sua inserção no mundo. Em Barsotti, assim como em muitos artistas de tendência construtiva, percebe-se a valorização do processo de trabalho, dos estudos como método de criação com base em um conceito emulador. Nesse sentido, a qualidade plástica e inventiva presente em seus estudos valoriza sua criação artística como processo ao mesmo tempo em que articula de maneira profunda e significativa os elementos que compõem a obra final.
Seus estudos não subordinam a intuição ou a subjetividade ao conceito ou ao resultado, mas antes buscam dominar tais impulsos na busca da realização de obras que sejam, ao mesmo tempo, belas e vigorosas e que atendam a uma racionalidade que permite sua realização. Por meio de seus estudos, percebemos como Barsotti foi um artista que aliava cultura visual a um processo bastante intuitivo. Portanto, sua distância dos pressupostos concretos e, por conseguinte, sua afinidade com o neoconcretismo se tornam claros: não se trata de priorizar a racionalidade ou a funcionalidade de uma produção. Seus estudos podem ser pensados como o gesto mediado pela consciência e, portanto, como uma forma de ação intencional, não gratuita.
Os estudos de Barsotti reverberam sua gramática tanto nos desenhos quanto na pintura. Em alguns, por exemplo, há a descrição do uso de cores e medidas, indicando uma precisão calculada no uso do espaço pictórico. Eles manifestam o raciocínio engendrado com base em uma lógica de produção. Certamente sua atividade como artista gráfico, simultânea à de artista, permitiu que ambos os métodos de criação entrassem em sintonia. Seus estudos arquitetaram uma ordenação mental e pragmática sobre as escolhas e os procedimentos específicos do artista. Mas, além disso, o cuidado na elaboração poderia bem alçá-los à condição de obras de arte, seja por sua qualidade na produção, seja por seu apuro nos detalhes.
Hércules Barsotti trabalhou, assim como muitos artistas, com o princípio da série. Não necessariamente o fez de forma calculada, com indicadores de início e fim de pesquisas plásticas específicas. Podemos, no entanto, defini-las a partir de um retrospecto de sua produção: as pinturas abstratas, as pinturas e os desenhos estruturados em preto e branco, as pinturas da fase construtiva utilizando a cor e molduras losangulares, a retomada das pinturas com cor e areia.
A série, para a arte contemporânea, tem um valor de ruptura primordial. É por meio desse agenciamento que se coloca em xeque a ideia de obra única. Com isso, torna-se uma prática que rompe com uma tradição que vincula os princípios da criação e da execução da arte como um ato singular ou, ainda, como derivações singulares em um âmbito maior de cânones herdados e, também, com a definição da própria obra de arte enquanto tal. A série, pela própria lógica, insere a obra de arte no âmbito da produção em função de sua multiplicidade. Ao analisar a obra de Barsotti, percebemos como a série acentua suas opções plásticas e, no conjunto, nos permite notar como ocorrem os agenciamentos propostos pelo artista.
O conceito de série, conquanto próximo,não se confunde com aqueles da repetição ou da acumulação, que não são coincidentes e, ideologicamente, podem ser mesmo antagônicos em seus princípios. A seriação permite a articulação imperativa de partes que engendram um sistema. Por isso mesmo, acaba por se tornar uma forma de resistência da arte frente à possibilidade de reificação em um universo dominado pela racionalidade excessiva e que determina um papel de subordinação do sujeito. Barsotti tinha, em seu processo de trabalho, um rigor plástico que conseguia, ao mesmo tempo, engendrar séries e lidar com percepções e sensações que afastavam sua obra de redundâncias argumentativas.
Martin Heidegger (1966) sugeriu que o pensamento meditativo podia ser uma oposição necessária frente à constante celebração do presente. O autor associou a celebração à ausência de pensamento. Ele ressaltou que o “pensamento calculador”, ou seja, aquele que faz prevalecer uma relação na qual a tecnologia e a indústria determinam a relação do homem àquilo que já existe, o subjuga a um papel predeterminado em um mundo visto apenas como fonte de energia. Como forma de resistência a um estado puramente celebrador, Heidegger propôs um “pensamento meditativo” contra o que qualificou como uma “debandada do pensar”, que gerou a perda da radicação (do homem a sua terra) e o fim da autoctonia do trabalho. Assim, sugeriu, além de um contentamento com a afirmação da ciência e da tecnologia, uma reflexão sobre a nova inserção humana nesse universo. Naquilo que diz respeito ao papel da arte, Heidegger afirmou que a abertura para a compreensão não ocorre de maneira acidental e, portanto, via na criatividade que produz trabalhos duradouros uma maneira de forçar novas raízes.
Considerando a visão de Heidegger sobre o processo criativo e o papel da arte, pode-se considerar que a seriação – como forma de resistência – parece bastante instigante, uma vez que permite à arte fazer frente à excessiva racionalidade técnica que acaba por impulsionar um estado de presente absoluto. Entendemos, além disso, que o processo criativo de Barsotti, ainda que não ideologicamente intencional nesse sentido, fazia parte de um momento bastante autocrítico da produção artística. Seu método de trabalho reforçava a compreensão da não gratuidade do ato de produzir, ver e experimentar a arte.
Walter Benjamin (1985) lembrou que “relações sociais são (...) condicionadas por relações de produção. E quando a crítica materialista abordava uma obra, costumava então perguntar como essa obra se coloca ante as relações sociais de produção da época”. O autor afirmou que é necessário avançar nesse raciocínio e, ao fazê-lo, se perguntou como uma obra se coloca nas relações de produção, ou seja, ele apontou de modo imediato para a técnica de produção das obras. Para Benjamin, o conceito de técnica se refere àquilo que torna as obras acessíveis a uma análise imediatamente social e, a partir dessa característica, a uma crítica materialista. Tais argumentos parecem suficientes para pensar a questão da série, em especial na obra de Hércules Barsotti, como uma das possíveis formas de sensibilidade contemporânea, afeita aos novos padrões de produção tanto na indústria quanto naquilo que ela acaba por propor como uma forma de pensamento e que permeia as várias instâncias sociais, econômicas, políticas e, certamente, artísticas e culturais que deram forma ao século XX e com emanações que perduram até hoje. Não à toa, a produção do artista em artes gráficas informa seu trabalho como pintor e vice-versa, em um amálgama de procedimentos muito afeitos a sua proposta, a sua operação sensível e aos resultados plásticos de ambas.
Parece-nos que a seriação, como processo que leva à possibilidade de um olhar mais atento, é bastante sugestiva à medida que tem potencial para realizar a crítica de um sistema vendo-o por dentro, ou seja, a partir de sua inserção em tal universo. Mais ainda, trata-se de um grande estímulo para pensar a obra de Barsotti além de seus processos e dos resultados plásticos.
O trabalho de Barsotti demanda um tempo de observação e de participação do olhar dos espectadores por meio dos quais as obras vão permitindo revelações que nos remetem à uma visão ao mesmo tempo sensível e intelectual do real proposto pela obra. Nesse caso, o conceito de “real” acontece no sentido de algo que se liga à ideia de uma presença como objeto de interesse para o pensamento e, da mesma maneira, de sua autonomia. Dessa maneira, Barsotti permite, por meio de uma visualidade que acontece no espaço e no tempo, uma oportuna fusão entre uma percepções e sensações conscientes. A obra do artista, ao instituir o pensamento, é constantemente atualizada e ressignificada por esse mesmo pensamento. Acima de tudo, trata-se de uma produção profundamente despojada e bela.