Deus está solto! Touro livre. Pássaro de fogo.

Numa sexta-feira 13 do mês de dezembro de 1968, às 21h45, o general Costa e Silva recebe Alberto Curi, locutor oficial da Voz do Brasil, quem mandara buscar 4 horas e 12 minutos antes. Abre uma pasta de cor bege em perfeito estado e, com a mão direita, lhe entrega 18 laudas batidas numa tipografia maior que a de costume e com anotações laterais feitas a lápis. Era o documento do Ato Institucional nº 5. O locutor pede para se preparar. Seu pedido lhe é negado. Não há tempo, e as câmeras de TV e os microfones das rádios já estavam a postos. O locutor é levado ao Grande Salão de Visitas, no andar térreo do Palácio Laranjeiras. Em sua frente, uma mesa de mármore de suporte barroco. Às suas costas, uma copia da tela a óleo em que o francês Hyacinthe Rigaud pintou o retrato de Luís XIV. O Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva chega à sala 12 minutos após a entrega dos papéis e senta-se ao lado do locutor. Com o dedo indicador e o dedo médio, enxuga o suor que escorre de uma de sua têmporas. Na outra ponta do salão, o ministério inteiro assiste imóvel e em pé. O anúncio é proferido ao longo de 18 minutos, sem qualquer erro. A partir dali, era possível ao “Presidente da República” decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Deus está solto! Grita Caetano Veloso, em outra noite, 89 dias e 58 minutos antes do encontro entre locutor e general. O artista já havia parado de cantar a música “É proibido proibir” em sua apresentação no Festival Internacional da Canção (FIC) que acontecia no Teatro da Universidade Católica (TUCA). No momento, discursava de forma improvisada em resposta à parte da plateia enfurecida que insistia em lhe interromper. Enquanto Os Mutantes — a banda que lhe acompanhava — continuava a tocar como era possível, atiravam-lhe vaias, bolas de papel, ovos, tomates e pedaços de madeira. É provável que a histeria tenha sido disparada como reação aos aspectos experimentais e insólitos daquele happening: roupas brilhantes feitas de plástico, tomadas, pedaços de lâmpadas, colares e outros apetrechos extravagantes; o uso de guitarras elétricas; reboladas e danças com conotação sexual; e a presença surpresa do norte-americano Johnny Dandurand pulando e dando gritos no palco. Feito um transe repentino anexo ao seu discurso, o dito empregava um revestimento esotérico ao tumulto, e se opunha à repressão daqueles comprometidos com um nacionalismo de esquerda e que não toleravam traços estrangeiros, homoeróticos ou religiosos.

170 dias, 7 horas e 17 minutos antes do encontro entre locutor e general, saía as ruas, no Rio de Janeiro, a Passeata dos 100 mil. Entre a multidão, destacava-se uma enorme faixa, estruturada em dois longos pedaços de madeira, cada qual carregado por uma pessoa, com os seguintes dizeres: Abaixo A Ditadura — Povo No Poder. A manifestação encerrou-se em frente à Assembleia Legislativa, sem conflito com o forte aparato policial que a acompanhou o tempo todo. Completavam-se 5 dias, 3 horas e 53 minutos do início dos confrontos que marcaram a Sexta-feira Sangrenta, quando uma passeata que se colocava contra o regime político instaurado no país foi recebida pela polícia com tiros e bombas de gás lacrimogêneo lançadas de helicópteros. Naquele dia, até o fim do dia, entraram em óbito 27 civis e um policial — atingido por um balde de cimento atirado do alto de um edifício em construção. É claro que tiveram outras centenas de feridos e cerca de mil presos. Também 15 viaturas foram incendiadas na Sexta-feira Sangrenta.

Deus está solto! Poderia estar preso. Não fazem nem 50 anos.

Deus está solto! E a moral é nossa.

Deus está solto! Está soltinho. E um novo golpe foi consumado. Há uma farsa em curso. É inaceitável!

16.421 dias, 7 horas e 29 minutos depois do começo da Sexta-feira Sangrenta, no mesmo mês de junho, sai uma passeata do Movimento Passe Livre (MPL) na cidade de São Paulo contestando o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus e trens do Metrô e da CPTM. 15 pessoas são detidas. Os noticiários enfatizam a depredação de bancas de jornais, estações de metrô e lixeiras na região da Avenida Paulista. O MPL acusa a Polícia Militar de truculência. A resposta oficial é que usam a força apenas para liberar o tráfego em vias importantes bloqueadas pelos manifestantes. Naquele mesmo dia, e nos outros que se seguiram, diversas cenas de violência cometidas por policiais são documentadas e compartilhadas em redes sociais. Escancara-se uma nova tipologia de agressões e torturas gerenciadas pelas forças institucionais brasileiras.

O prefeito da cidade, Fernando Haddad, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), atribui a destruição ocorrida durante os protestos a “criminosos”, e diz que “infelizmente o debate tem sido interditado por grupos que não confiam na democracia”. Para o governador do estado, Geraldo Alckmin, filiado ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), interromper o trânsito em vias importantes é “caso de polícia”.

Deus está solto! Como um sujeito que transita por qualquer demanda, qualquer crença, qualquer rito, qualquer festa.

Há uma escalada repentina nas manifestações em todo o país, e alguém na TV está muito confuso. Um comentarista político é convidado para entrar ao vivo e explicar o que se passou. Discutem se foi ou não pelos 20 centavos.

12 dias, 23 horas e 16 minutos passados desde o primeiro protesto do MPL de São Paulo no ano de 2013, governador e prefeito se encontram no Palácio dos Bandeirantes. Feitos os cumprimentos habituais, o primeiro, vestido de terno cinza, relembra-se em voz alta de um episódio do início do ano e faz um comentário a respeito do relógio do outro, vestido de terno preto. Apesar das 6 declarações repetindo que não haveria fonte de financiamento para mais subsídio sem retirar de outras áreas do orçamento e que reduzir a tarifa naquela ocasião seria uma medida populista, voltam atrás e cancelam o aumento. Com isso, o valor das tarifas que era de R$3,20 voltaria a custar R$3,00. Já à noite, líderes do MPL são vistos comemorando em uma esquina da Rua Augusta. Um deles, nitidamente eufórico, com o rosto avermelhado vestido por óculos e uma barba sem bigode, gesticulava com os braços para cima, e dizia, chiando ao encostar a língua nos dentes superiores, que todo os esforços dos últimos anos haviam se justificado em razão daquela vitória. Ficara claro que o aumento de tarifa não era apenas uma questão de ordem financeira, mas sobretudo, política. O ato marcado para o dia seguinte é mantido a título de celebração e retificação. Como já havia ocorrido de maneira geral nas últimas grandes manifestações na cidade, houve um arrefecimento na postura policial.

Corridos 937 dias e 52 minutos da redução dos 20 centavos, a Polícia Militar executa um Caldeirão de Hamburgo — tática proibida pelo próprio manual de conduta da Corporação — diante de um novo protesto contra o aumento de tarifa anual. Na ação, milhares de manifestantes são encurralados na Avenida Paulista. No intuito de concentrar todas as pessoas no interior do isolamento, foram disparados sprays de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e golpes de cassetete. Quem pode, grita, e o clima é de completo desespero. Uma garota de camiseta branca e calça jeans corre para tentar escapar da brutalidade da confusão e logo é atingida por um policial com um soco no rosto.

Deus está solto! É verdade. Tem gente no jardim. Tem trabalho na esquina. Tem sangue na calçada.

Deus está solto! Aqui, em 9 páginas, frente e verso, com o fundo vazado. Indo e vindo, num delírio amontoado, de um lado para o outro.

Deus está solto! No escaldo do corpo. De 68 aos anos 80, de 2013 para cá. É cabuloso. Em qualquer lugar.

Deus está solto! Um pulso se esgueira na medida do pescoço.

XLIX

Germano Dushá