Imagine uma cena, talvez familiar: uma criança, em algum momento entre os anos 1960 e 1990, maravilha-se com o laborioso processo que dá vida a seus personagens favoritos dos desenhos animados: os milhares de quadros desenhados à mão, pintados, sobrepostos, fotografados em película e, então, como se por mágica ou virtuose dos desenhistas, em movimento. Depois, noutra cena, nos anos 2000, um adolescente, talvez filho ou neto da primeira criança, fica encantado com a descrição dos espaços e rotinas do escritório de uma empresa “.com” tal qual a Google, em que lazer, alimentação e ócio parecem indistintos do trabalho. Nessas anedotas estão dois aparentes paradoxos: o trabalho criativo que depende da repetição seriada da manufatura e o trabalho burocrático que dilui a rotina ao forjar o estereótipo do cotidiano de artistas.
Em ambos os casos está em cena a falsa polaridade entre invenção e repetição, criação e trabalho – coisa que, a bem da verdade, alimenta-se da divisão do trabalho e de classe entre quem pensa e quem faz. Uma polaridade que a linguagem da animação confunde e que o frisson já démodé das empresas de tecnologia digital reitera.
Os trabalhos de João Angelini aqui reunidos, todos de alguma forma tributários de princípios da animação, navegam entre esses polos. Em L.E.R. (2007), a rotina burocrática do protagonista carimbador ganha, pela justaposição de centenas de fotografias de longa exposição, caráter frenético, maquínico e surreal. Figura-se como imagem do trabalho repetitivo e alienado, construída por uma técnica também repetitiva, mas distante de qualquer automatismo: sem pós-produção, o vídeo é herdeiro direto da animação tradicional, com o cuidado quase coreográfico no registro de cada frame em que o ator se move em velocidades diferentes corpo e cabeça. Assim, repetições criativas e laborais convergem em uma única narrativa.
Do outro lado, noutra sala da exposição, Linhas (2011, colaboração com Luciana Paiva) emprega princípios técnicos similares na feitura de uma singela alegoria da “anima” que o desenho animado empresta aos traços. A ilusão que a sucessão de quadros cria – de que riscos estáticos estão vivos e em movimento – torna-se quase palpável quando se inscreve nas mãos de um homem e uma mulher que se encontram, convergem e se afastam em uma dança miniaturizada que poderia nunca acabar. Assim, repetição, invenção e encontro nivelam-se em um só plano, como se nunca precisassem ter sido pensados em separado.
Entre esses dois vídeos, o conjunto de trabalhos joga com as possibilidades em aberto, ora remetendo ao duro do trabalho, ora ao encanto do gesto em movimento. Sinestésica, a nova instalação Funk de 4 (2014) faz da mudança ritmada de canais em quatro televisores antigos fora de sintonia o princípio de um “batidão” que reconhecemos aos poucos, quase descrentes que as imagens e aparelhos que em tudo remetem a obsolescência e ruído possam afinar-se em uma melodia reconhecível. Não há propriamente animação, mas o jogo entre continuidade e corte que esta, mais até que o cinema, nos ensinou a perceber.
Ao lado, em duas bases, os trabalhos Moeda Fria: R$ 1,00 e Nota Fria: R$ 100,00 (2014) empregam outra sinestesia para fazer a grana queimar infinita e assepticamente. O grande e o pequeno dinheiro aparecem igualmente machucados pelas chamas e como se queimando ainda. Agora, é a nossa habilidade de interpretar informações em planos diferentes como unas (algo tão praticado enquanto assistíamos desenhos animados de técnica tradicional) que consuma a ilusão do fogo que nunca termina de consumir seu substrato. Essa é a mesma capacidade de se enganar que emprestamos ao trabalho seguinte, Corda Gota (2013), levados a crer que há água onde não há, que algo efetivamente está acontecendo diante de nós.
Adiante, a ilusão sinestésica já apreendida nos trabalhos anteriores retorna analisada, dividida em dois momentos. Primeiro, quando observamos as barras de cores se alternando no televisor, podemos flutuar um pouco diante de sua velocidade aparentemente histérica, em seguida, ao colocar os fones de ouvido e perceber os ritmos e sobreposições que acompanham a sequência de cores na tela, passamos a perceber a histeria como ordem e progressão sonora.
Até aqui, o trabalho de João Angelini convoca nossa percepção para encontrar ou escavar imagens, movimentos e ritmos de dentro de hábitos e materiais em princípio desordenados, maçantes e/ou sem hierarquia. Atribuir ou encontrar “anima” dentro de gestos e sistemas repetitivos, empregando a própria repetição, sequencialidade e contaminação entre imagem e som, plano frontal e plano de fundo, como princípios intercambiáveis. Em de castigo (2012), porém, a estratégia se inverte e o repetitivo da animação se volta contra seu feitor, enquadrando Angelini no papel antes designado ao burocrata de L.E.R.. O artista, em cuja trajetória a participação no coletivo performático EmpreZa ocupa lugar importante, vira o engravatado eternamente preso em suas próprias rotinas, pequeno Sísifo contemporâneo a bater-se entre as paredes. A mágica da animação volta a submeter-se à inevitabilidade do trabalho.
Ao fim, de volta à sala menor da exposição, encontra-se Molécula (2011), que nos devolve à delicada possibilidade de encantar-se com o que – racionalmente – sabemos ser apenas linhas fotografadas e montadas uma depois da outra. Pois assim é com o trabalho de João Angelini, jogo que leva de volta ao maravilhamento infantil enquanto tira sarro dos que acreditam que há alguma espécie de paraíso do trabalho criativo, lugar de idílio estranho à dureza dos processos. Nos dias de hoje, quase sempre que se fala em nome do imaterial e inefável se está, em última instância, justificando extrapolações do mercado financeiro com seus títulos futuros, sua negociação de créditos de carbono, sua valoração ilimitada das cifras dos leilões de arte... em contraposição, pode ser pertinente que a arte, justamente quando flerta com as propriedades quase mágicas da linguagem da animação, nos leve de volta à terra do trabalho que torna possíveis suas ilusões e metáforas, ao impasse repetido entre o que se faz e o que se vê.
Paulo Miyada
João Angelini. Planaltina, Brasília, 1980. Vive e trabalha em Brasília, Brasil.
Membro do Grupo EmpreZa de Goiânia desde 2008 e co-fundador do coletivo TresPe de Brasília, ambos com o foco em performance. Atualmente é professor de gravura, animação e tridimensionalidade da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, onde leciona desde 2008.
Tem na imagem em movimento o maior ponto de partida para suas pesquisas, que tem desdobramentos em vídeos, animações, fotografias, gravuras, performances e brinquedos. Pela diversidade da produção, tem seus trabalhos publicados regularmente em eventos de diferentes meios institucionais como cinema, teatro, shows de rock e galerias de arte. Suas premiações tem a mesma diversidade: como festival Anima Mundi 2009 (Júri Popular/SP) e Bolsa Funarte de Produção 2010, Arte Pará 2012.